Talvez Professor
quarta-feira, 6 de julho de 2011
Tecnologias de Informação e Docência: Abordar ou Não?
Há uma citação de Perrenoud, dizendo que “As crianças nascem em uma cultura em que se clica [...] a escola não pode ignorar o que se passa no mundo” (PERRENOUD, 2000). Conforme pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), de 2003, o Brasil ainda apresenta um alto índice de exclusão digital. Não me aterei aos detalhes da pesquisa, por estes poderem ser facilmente acessados através do link que consta nas referências e também pelo fato de que este texto tem como objetivo realizar uma breve reflexão. Aqui se colocarão questões para as quais ainda não se tem uma resposta nítida.
A primeira pergunta que se pode fazer a partir da frase de Perrenoud é “quem clica?”. A citação do autor pode trazer certa ambiguidade, já que dizer que nas organizações sociais as tecnologias virtuais tem centralidade e definem processos é diferente de afirmar que a maioria da população participa ativamente destes processos. Os resultados da pesquisa da FGV já nos indicam: quem “clica” são aqueles que têm acesso direto a produtos e serviços que envolvem tal tecnologia. Quem não tem acesso, ou quem “não clica”, são aqueles que não recebem benefícios destes produtos e serviços e/ou não possuem alguma participação decisória nestes processos.
Se temos um cenário em que tecnologias virtuais possuem centralidade socioeconômica, que se constituem enquanto fontes importantes de informação na atualidade e que apenas parte da população tem acesso a esta fonte de informação, a questão que fica é “como considerar as tecnologias de informação e comunicação nos processos educacionais?”. Creio que esta resposta necessita de duas perspectivas: uma em relação a quem está incluído neste processo e outra em relação a quem não está.
Não vê-se que professores devam ignorar o fato de terem alunos altamente envolvidos com internet, por exemplo. Sendo a internet uma fonte rica em uma multiplicidade enorme de informações, pode resultar tanto em um provimento de informações atualizadas e pertinentes no aprendizado do aluno como também resultar na captação de informações redundantes, não tão atualizadas e mesmo errôneas. Se é pensado que a função da escola é preparar o aluno para “a realidade”, e esta é composta por estes tipos de tecnologia, docentes não podem deixar de se envolverem.
Este envolvimento também é necessário, mas por outro viés, em relação aos excluídos do mundo digital. Aprender a lidar com tecnologias de informação pode ser encarada como uma forma de emancipação social. Se os alunos se defrontarão com um mundo em que o “virtual” tem centralidade, devem ter certa preparação para lidarem com este mundo.
Theodore Schultz coloca dois aspectos sobre a educação que se aproximam com estas afirmações, em relação ao aspecto econômico. Conforme o autor, a educação 1) deve contemplar todos os segmentos sociais, afim de promover o desenvolvimento social (a exclusão não é eficiente) e 2) Deve preparar o indivíduo para dotá-lo de certa versatilidade, pois como as exigências do mundo do trabalho alteram-se frequentemente, os indivíduos devem estar preparados para estas mudanças, sem correrem o risco de virem a tornarem-se “obsoletos” (e aqui entra sua crítica ao foco na especialização) (SCHULTZ, 1971).
Antônio Gramsci e Pierre Bourdieu, teóricos de uma linha que trata da “reprodução social” nos processos educacionais, afirmam que a carga cultural do indivíduo em círculos sociais, como familiares, lhe confere facilitações na atuação enquanto aluno, em relação aos que não possuem o mesmo “capital cultural”, pela convivência com ambientes que possuem maior semelhança com os ambientes escolares. Tal diferenciação em relação a esse “capital cultural” seria um fator produtor de desigualdades sociais (BOURDIEU e PASSERON, 1982, GRAMSCI, 1989). Por esta perspectiva, podemos pensar que permitir um acesso a um capital cultural de forma mais equivalente seria um meio de reduzir as desigualdades sociais. Como diz Gramsci, a escola tem como dever criar estes “ambientes” propícios para a familiarização com o ambiente de aprendizado escolar igualitário.
Pensa-se que, pelo viés apresentado aqui, pode-se considerar, primeiramente, que uma função atual da docência seja inserir os alunos excluídos neste mundo virtual, incluí-los “digitalmente”, assim como aproximar-se da realidade dos incluídos, numa outra forma de atuação como guia (e ao tornar os excluídos inclusos, considera-los como tais). Mas, em um segundo momento, pode se pensar em quais seriam os resultados de uma aplicação utilitarista desta concepção. Nisto deve-se ter atenção em relação a questões ideológicas: apresentar e guiar um aluno por este aspecto da realidade não significa dizer que devemos ensiná-lo que ele obrigatoriamente deva seguir este caminho e/ou que não há outra perspectiva possível. Inclusive pensa-se que devemos ter cautela na adoção de tais tecnologias, de forma que o caminho a ser pensado deva ser de trabalhar com educação com o auxílio de tais tecnologias enquanto ferramentas, e não acabar educando sob as regras desse “jogo virtual”.
Referências:
- BOURDIEU e PASSERON. (1992). A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Ed. Francisco Alves. Rio de Janeiro, 1982.
- GRAMSCI, A. (1982). A organização da escola e da cultura. IN: Os intelectuais e a organização da cultura. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1989.
- Mapa da exclusão digital / Coordenação Marcelo Cortês Neri. – Rio de Janeiro; FGV:IBRE, CPS, 2003. Disponível em http://cps.fgv.br/mid (acesso em: 5 de Julho de 2011).
- PERRENOUD, Philippe. Dez novas competências para ensinar. Porto Alegre, Artes Médicas, 2000.
- SCHULTZ, Theodore W. O capital humano: investimentos em educação e pesquisa. Zahar. Rio de Janeiro, 1971.
Por Felipe Prolo e Luciano Carlos Berta Horn
PROPOSTA DE ATIVIDADE:
A proposta é de aplicação de uma aula, abordando uma temática da Sociologia buscando aliar teoria e exemplo da realidade. A idéia é afastar-se de uma abordagem puramente teórica que possa causar estranheza, desinteresse e dificuldades de abstração para alunos que não estão acostumados com o ensino e a linguagem técnica da Sociologia. De outra parte, não se pretende partir e discutir o conceito somente em função de um exemplo que envolva um tema próximo à realidade dos alunos, cujo envolvimento possa resultar em uma confusão entre teoria sociológica e juízos de valor, em um debate de “achismos”.
A proposta teórica da atividade é o conceito de “identidade cultural”, tendo como base um texto de Kathryn Woodward (2008). A autora faz uma exposição de tal conceito a partir de um exemplo simples, envolvendo o processo de diferenciação cultura entre sérvios e croatas, durante conflito separatista na região, a partir do relato de um jornalista que entrevistou um soldado sérvio. Do discurso do soldado, elementos constituintes do padrão de formação de uma identidade cultural são extraídos, discutindo-se também a importância da abordagem sobre este conceito.
A idéia é de centralizar o debate com os alunos em um exemplo de suas realidades, mas mesmo assim tem-se a intenção de trazer uma temática que lhes é familiar para exercitar a compreensão do conceito. Sendo assim, optou-se por buscar um exercício comparativo: um exemplo distante e não familiar (conflito entre sérvios e croatas) e um exemplo de formação de identidade cultural entre jovens brasileiros.
A aplicação da atividade, então, ocorrerá da seguinte forma: se partirá do exemplo dado pela autora para extrair os principais elementos para o entendimento do que é uma identidade cultural, onde entende-se que este tipo de identidade é:
- relacional: constrói-se na relação entre pessoas, onde o indivíduo considera-se a si mesmo em relação aos outros e não de forma independente desta dimensão. É um exercício em que o indivíduo se reconhece também ao ser reconhecido por outros de uma forma determinada. Nisto, diferencia-se identidade e subjetividade de um indivíduo.
- baseada na diferença: em sua construção relacional, os indivíduos formam suas identidades a partir da forma como diferenciam-se de outros indivíduos ou grupos. Definir o que se é na sociedade também é definir o que não se é.
- ao ser baseada na relação e na diferença, é resultado de um sistema de classificação.
- simbólica: São atribuídos significados a elementos da realidade em que, dependendo da relação ou não com tais objetos, conferem características sociais aos indivíduos.
- social: as distintas formas de reconhecimento em relação ao outro tem influência nas relações entre grupos sociais, em nível loca, nacional e global.
- não é fixa: sua construção modifica-se no processo histórico. Por exemplo, a diferença entre o que é considerado socialmente ser mulher entre o presente e o passado.
- é plural: a identidade não é unificada. Ao mesmo tempo em que indivíduos consideram características distintas de outros indivíduos, consideram também semelhanças, o que pode lhe conferir certo caráter “contraditório”. Um soldado sérvio é homem, militar, europeu, vive nos Balcãs, etc. Certas classificações são mais destacadas do que outras ao assumir uma identidade, mas todas podem “vir à tona” no processo de relações sociais.
A partir desta abordagem, será mostrado um pequeno vídeo (escolhido em função do tempo de aula e de acordo com o que foi possível encontrar na internet), que trata da questão das “tribos urbanas”. Tais “tribos” em questão seriam os diferentes grupos de jovens que classificam-se, identificam-se relacionam-se de acordo com seus visuais e gostos musicais. Após o vídeo, será feito debate, em que o exercício é o de aliar as similaridades entre os dois exemplos distintos expostos, bem como identificar e discutir a relação dos elementos levantados sobre o conceito de identidade com as maneiras através dos quais os jovens do vídeo posicionam-se e identificam-se.
Referências:
- WOODWARD, Katrhyn. In: SILVA, Tomas Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 8 ed. Petrópolis, RJ. Vozes, 2008.
- <HTTP://www.youtube.com/watch?v=Av7G-tDgwZY&feature=related> (extraído do programa televisivo “A LIGA”, apresentado em 06/07/2010).
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APLICAÇÃO:
A aula foi dada para uma turma de estudantes de semi-intensivo do cursinho pré-vestibular popular ONGEP, em Porto Alegre. Apesar de não ser conteúdo que consta nos processos vestibulares, a organização do cursinho considera pertinente o ensino de Sociologia para seus estudantes, como apoio tanto para a própria prova (por exemplo, a redação) como em uma formação em si, pretendendo-se ir além do vestibular. Foi a segunda aula de Sociologia que tiveram no curso, sendo que não tiveram essa disciplina na escola. A aula em questão foi dada após ter sido abordado com os alunos a questão “o que é Sociologia e por que é uma ciência?” (obviamente, questão não encerrada logo na primeira aula).
A turma era formada por cerca de 15 alunos, em grande maioria jovens. Cerca de metade deles fizeram intervenções, com perguntas, opiniões e reflexões sobre o que havia sido apresentado. Os apontamentos não se iniciaram somente ao ser apresentado o vídeo que envolvia a temática de juventudes, mas já no exemplo da autora em que nos baseamos. Após a exposição do exemplo, foi questionado aos alunos “como esse soldado sérvio se identifica?”. A partir de apontamentos dos alunos, foram apontados no quadro os aspectos extraídos, relacionados aos elementos propostos pelo texto. O vídeo, que pensou-se em mostrar pouco depois da exposição do exemplo da autora e da extração dos elementos, ocorreu somente na metade da aula.
Pode-se dizer que o tempo de aula foi insuficiente para passar o conteúdo. Mesmo que se considere identidade cultural um tema amplo, foi percebido que determinados aspectos não ficaram bem desenvolvidos, em parte. A questão dos sistemas classificatórios precisaria ser mais explorada, por dois motivos. O primeiro foi o fato da forma como os julgamentos de valor por vezes encobriram os aspectos trabalhados sobre as formas através das quais uma identidade é formada. O que já era esperado, por serem termos que tem significados atribuídos também no senso comum, e se pode esperar que justamente estes significados sejam aqueles com os quais os alunos tiveram o contato, e não os de uma área de conhecimento que nunca estudaram. A segunda foi o fato de se ter percebido que houve, em certa medida, uma confusão entre diferenciação e discriminação. Viu-se que há a necessidade de trabalhar melhor, e trazendo, do exemplo, para o âmbito mais abstrato, como a diferenciação pode resultar em discriminação, mas que ambas as noções não são equivalentes.
Mesmo considerando o tempo insuficiente, a experiência foi considerada válida. Apesar de se ter visto certas confusões sobre o entendimento do conteúdo, houve aprendizado, como quando, ao se diferenciar subjetividade de identidade, o que o indivíduo pensa de si e como se posiciona no mundo, um aluno deu um exemplo “sim, um “metaleiro”(fã de música estilo heavy metal), que trabalha em um supermercado, não vai agir e se vestir como um “metaleiro” no trabalho”. A noção de que agir no mundo envolve posicionar-se em relação aos outros, que é algo constituinte da vida social.
Um ponto que chamou a atenção foi a questão da linguagem. Procurou-se não utilizar uma linguagem, por exemplo, como a utilizada para redigir este texto. Mesmo assim, ao lançar um exemplo onde, para diferenciar a subjetividade e identidade, perguntei aos alunos como eles consideravam que o professor ali presente era visto na sociedade, a questão da forma como se falava foi um ponto levantado (mesmo tendo sido feito uso de gírias em alguns momentos). Viu-se algo que já se pensava, e um exercício a ser feito: não adotar a linguagem do aluno, nem mesmo usar uma distante para lhe “servir de exemplo”, mas buscar uma mediação entre uma linguagem técnica e uma linguagem cotidiana, frisando as diferenças conceituais.
No mais, houve uma boa participação e uma boa acolhida por parte dos alunos, o que facilitou bastante, ainda mais dado o fato de ter sido a primeira experiência docente aplicada. Após a aplicação, por não se ter tido todos os resultados esperados, houve uma mistura de frustração com motivação: a vontade de dar aquela aula novamente.